sexta-feira, 24 de junho de 2016

O princípio do desmoronamento



Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno
E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?
É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.
Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.
Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,
Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.
Tu disparas contra a luz.
Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.
Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.
Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.
Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.
Há tantos meses que não chove – reparaste?
A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.
Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.
Quem deve. Quem empresta. Quem paga.
Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.
Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.
Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.
Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,
Nós não queremos disparar.

(Filipa Leal)
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Sur l'infini bleu, Anouar Brahem


 
 

7 comentários:

Majo Dutra disse...

Pode não desmoronar, mas que é um grande abalo, isso é.
O que sofrem os países com chefias incompetentes!
A crónica de Sofia Alves esta tocante e especial.
Grata pela partilha.
~~~ Beijinho, MJ ~~~

http://avivenciaravida.blogspot.pt/

O Puma disse...

O que nasce torto
morre torcido

obrigado, venerador e atento disse...

Gosto. Não à maneira facebokiana. Gosto muito à maneira que gosto deste blog, que aqui se desviou do seu caminho sem sair do seu belo caminhar.
O rigor, no entanto, obriga-me a dizer - mais uma vez e todas as que puder - que a Europa (geogafia, história, cultura) não é a União Europeia (associação con-tratada entre Estados da Europa) e, nem que fossem todos os Estados con-tratados, esta U.E. NUNCA se poderia arrogar/arrojar a substituir aquela Europa.
Obrigado!

Graça Sampaio disse...

Muito bom! (Esta Europa, melhor, está UE não é nada!! Completamente Deutschizada....)

Duarte disse...

Somos dependentes, lamentablemente. É uma pena, mas também uma realidade.
Abraços de vida

Clarice disse...

Eu fiquei emocionada e arrepiada. Que palavras certeiras e fortes, que não se aplicam apenas à Europa. Faz tempo que em todo lugar e por qualquer justificativa se cometem esses roubos imperdoáveis. Dói meu coração ao ver tantas crianças e jovens à beira da vida e muitos morrerem sem causa que seja deles. Triste e revoltante.

Se me permites vou levar este post ao meu espaço no Facebook.

Rui Fernandes disse...

Perdi o contexto deste texto e o não saber a sua motivação aleija-me a sua compreensão. Ele é válido em abstracto ao longo do tempo (já que, no espaço, esta Europa continua a ser naquela Europa) porque a verdade é que não chove, mesmo e sobretudo metaforicamente, a cultura definha e o o seu solo erode. Quero dizer que o texto é válido ainda hoje, como o era antes de ser, e será por tempos indefinidos, porque nada acontece, melhor, o que acontece é a perpétua repetição e retorno do mesmo. A Europa (esta) é uma invenção bárbara medieval construída sobre uma interpretação enviesada do que fora o imperium. O imperium uniu a Europa (aquela), a Ásia e a África ao redor de um mare nostrum, o mediterrâneo, o centro da globalização romana. O império carolíngio, o sacro império romano-germânico, o cisma do Oriente, a Reforma, as duas guerras mundiais, o III Reich e a UE, tudo isso e muito mais, separaram a Europa (aquela) do seu berço biológico (a África) e do seu berço cultural (a Ásia). A união continental sempre foi e continua a ser um campo de forças onde rivalizam as três potências políticas e culturais, o Norte Luterano, o Sul católico e o Leste ortodoxo. O Mediterrâneo deixou de ser a autoestrada marítima do império e tornou-se num cemitério devastador. Europa, requiescat in pace.