domingo, 14 de dezembro de 2008

Intervalo poético




O Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
rios, a grande paz exterior das coisas,
folhas dormindo o silêncio
- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra a carne e o tempo.


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Poesia Toda, Herberto Helder


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(Deixo-vos na melhor das companhias - eu vou até ali à velha Indochina e já volto.Bom Ano!)




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Waltz for piano no.9 "Farewell", Chopin -Vladimir Ashkenazy

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A tortura do louva-a-deus







Hoje estás a exagerar, Donaminha! Hoje até podias ter posto um poema, ou uma flor, ou até outro gato, que eu não reclamava. Era escusado mostrares este jogo... isto é coisa íntima, cá de casa!
Enfim, já que está publicado fica publicado, mas não mostres a última cena por favor, pode haver crianças a visitarem o blog...

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Stardust -Stéphane Grappelli

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

E eu?



E eu, Donaminha? Ando para aqui a lutar com a minha bronquite sazonal, hesitando entre o calorzinho de casa onde está o teu colo, e o frio gélido do jardim onde ainda encontro alguns ratos distraídos, e tu aproveitas para encheres o meu blog com asiáticos ameaçadores, com vistas da cidade e do campo, com poesias e lagos. Quando me dás tu espaço para conviver com os meus fãs? Quando é que há justiça neste mundo? Então e eu??.
My funny Valentine-Gerry Mulligan Quartet +Chet Baker

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

"Many Times" (em Serralves)







Entrei tranquila e curiosa na sala grande. Porque de longe a multidão me pareceu simpática e acolhedora, conversando e rindo em posições amigáveis.
Fui vagueando cada vez mais atónita por entre aqueles rostos impassíveis e indiferentes à minha presença, sentindo-me pouco a pouco inquieta, intrusa, isolada. Quase cercada. Como se tivesse devassado o encontro de uma sociedade secreta. Como se estivesse à beira de um perigo.
Incapaz de comunicar com aquele grupo coeso, cúmplice, poderoso e dominante, saí quase a correr, tentando não resvalar para um medo irracional.
Tal o poder das esculturas de Juan Muñoz.
(quero acreditar que outros visitantes da exposição tenham feito uma leitura diferente...)
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(Nocturno de Chopin, por Maria João Pires)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A breve visita do meu amigo irlandês



O meu amigo irlandês veio visitar-me. Não só por saudade, disse ele, mas quase por uma questão de sobrevivência. Cansado do seu EREMITÉRIO, onde vivia num MISTICISMO de SILÊNCIO e comunhão com a natureza, precisava com urgência de um pouco da luz e da suavidade do sul para poder enfrentar um inverno que se adivinhava feroz, pois mal começara já enfeitava todas as noites os beirais com longos SINCELOS, que pela manhã brilhavam como brincos de cristal. O sol e a luz do sul, sublinhava, seriam um UNGUENTO apaziguador para as suas MÃOS doridas, para o corpo envelhecido e para a alma cheia de nódoas negras.

E (continuando a esclarecer-me com gravidade e graça) para que a terapêutica fosse completa, precisava também dos cheiros que no norte lhe faltavam: o cheiro do PÃO quente, o odor da lenha a queimar devagar, a PRECIOSIDADE perfumada de um campo de urze e alfazema coberto por nevoeiros leves.
“There is an INFINITUDE of reasons for one to be happy in your country…”.

Teria sido ALEIVOSIA minha não lhe aceitar a infinidade de razões. Embora, conhecendo bem a sua fina ironia, eu vacilasse entre a COMISERAÇÃO pela sua possível fragilidade física e a quase certeza de que se tratava de efabulação sua por motivos indecifráveis. Na dúvida, e sorrindo, limitei-me a URDIR à sua volta um casulo de ternura e amizade, e a recebê-lo de braços abertos.
Por cá ficou vários anos…
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(8º jogo das 12 palavras)
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My Ideal, Coleman Hawkins

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A cidade branca





(...)
"outra vez te revejo,
com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
transeunte inútil de ti e de mim,
estrangeiro aqui como em toda a parte,
casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
no castelo maldito de ter que viver..."
(...)
Álvaro de Campos,Lisbon revisited (1926)(excerto)
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Carlos Paredes, Verdes Anos

domingo, 16 de novembro de 2008

Ontem, Na Festa da Poesia

Pedras

As vetustas pedras da noite
te dirão
da decepção
das andorinhas
ao perceberem as casas sem beiral.

Não chores.
Suspende apenas
um pequenino susto
na mais alta ramada
do caminho.

E observa
as poderosas colunas
amparando ruínas.

Licínia Quitério, De Pé Sobre o Silêncio

(foi bonita a festa, amiga)

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Eine kleine Nachtmusik, Mozart

domingo, 9 de novembro de 2008

Sem título




Anda agora boiando na lagoa
o cadáver da flor que eu não tocara
se não fora o desejo irreprimível
de ver uma flor morta sobre as águas...
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Sebastião da Gama, Cabo da Boa Esperança

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Sonata "Patética"-Rondo-Allegro (Beethoven)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Chega de saudade

Mas que é aquilo ali no post em baixo? Donaminha, tu deixaste entrar aquela espécie de felino no meu blog? O animal está desmazelado, não se penteia há meses, sei lá até se tem pulgas...

Não pode ser, donaminha, não posso admitir um post-hippy aqui dentro! É claro que não são ciúmes, que ideia a tua! É só pelos meus fãs! Não vês que eles estão incomodados, balhamedeus! Trata já disso, eu só saio daqui quando ele for embora.
O quê, parecido com o gato da tua mãe? (mas que raio de gosto o da senhora...) E tiveste saudades?? Oh diabo! Bom, sendo assim...enfim, está bem, que fique! Mas só desta vez sem exemplo. Chega de saudade (para quê saudades daquele, se ela me tem aqui ao pé?)
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My old flame - Gerry Mulligan Quartet

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Miragem doce






Foi um encontro casual, como todos os encontros empolgantes. Uma desordem repentina no tempo materializou ali, em cima do muro, o gato da minha infância, como uma miragem veemente e doce.

Ele, tranquilo e imponente, olhou-me com olhos insondáveis de quem percebe o mundo. Eu, perplexa e fascinada, aproximei-me em diálogo silencioso. Sugeri um afago, que ele permitiu distante e condescendente, contudo amável. E eu disse-lhe que o meu gesto era mais que uma homenagem à beleza e à sedução. Era um aceno de saudade ao tempo vivido. Ele entendeu.

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(Valsa para piano nº16, F.Chopin)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O menino que queria ser pássaro




















O menino sentia-se diferente. Diferente dos outros meninos que, sem se questionarem, continuavam a repetir os hábitos familiares e tradicionais, mesmo que daí não resultasse alegria. Mesmo que isso representasse uma espécie de CAPITULAÇÃO. A tradição queria-os a jogar boxe para se tornarem homens, e eles aprendiam boxe e contentavam-se com o prazer FALAZ de um elogio ou de um GALANTEIO ao fim do treino. A tradição queria-os mineiros em adultos, e eles mineiros seriam, sem perguntas nem ambições.

Ele era diferente. Ele queria erguer os olhos da ESCURIDÃO do quotidiano e alargá-los para horizontes de LIBERDADE. Ele queria chegar ao mundo da HARMONIA e da audácia. O menino sentia-se com forças para, num GESTO transgressor, criar asas e ser pássaro e não pedra, e viver em SINTONIA com o sonho que o preenchia. Ele queria dançar.

Foi duro enfrentar o preconceito e a intolerância. Por vezes o ESFORÇO parecia superior às suas frágeis forças, ou às forças que o seu frágil corpo fazia adivinhar. E no entanto permaneceu sempre, obstinada e corajosa, a vontade de ser pássaro. O SENTIMENTO seguro de que poderia voar em direcção a uma qualquer LUZ apenas pressentida, para além do abismo dos dias taciturnos.

Chegou a ser um grande BAILARINO.
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(tendo ainda na memória Billy Elliot, de Stephen Daldry)
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(7º Jogo das 12 Palavras)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Jogo do Tempo




Por momentos o Outono afastou-se do jardim, encostou-se a um cantinho recolhido nas folhas da videira, e deixou a Primavera brincar livremente, como se ainda houvesse tempo.
Algumas flores e o morangueiro, atordoados, entraram no jogo.

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Witchcraft, Bill Evans Trio

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Terapias alternativas...









...recomendadas contra toda a espécie de enfermidades, desde a simples dor de dentes até à pneumonia aguda: passeios, cultura e petiscos! Remédios santos!.
Vivalvi, Autumn( Allegro)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Convalescença à beira-mar

Vai lá donaminha, vai convalescer descansada para a beira-mar, que bem precisas de ganhar forças. Nem podes comigo pelo rabo...
E tu, fazdedono, descansa também desta correria dos últimos dias de põe termómetro, dá antibiótico, faz chá! Credinho, até fazia tonturas olhar para o teu desassossego!

Vão lá os dois descansados, que eu trato de tudo! Sim donaminha, agradeço por ti a todas as amigas e amigos que se interessaram pelas tuas melhoras. Sim, digo-lhes que já estás quase, quase a voltar à vida activa. Sim, e tomo conta da casa, claro. Vou ficar aqui de atalaia!
Trato de tudo, já disse - podem ir embora, apre!!
Finalmente lá foram! Agora é só dar as ordens à babysitter e já posso dormir a minha sesta descansado...RonRonRon!
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(Love me or leave me,Chet Baker/Gerry Mulligan)