É a doer, tem de ser a doer, morreram 64, ardidos, queimados, a fugir, sufocados em chaminés, encarcerados em carros sobre um talude onde até as jantes de liga leve derreteram( mas a quantas centenas de graus derrete a liga leve?), 64 até agora e provavelmente serão mais, há feridos graves e ainda andam a bater às portas a perguntar se falta alguém, 64 mortos têm de fazer isto andar, tem de ser a doer, não precisamos de chorar mas precisamos do choque, ...
...limpe as lágrimas mas abra os olhos, veja o que há, reveja o que houve, choque-se uma semana depois, muitas semanas depois, choque-se enquanto for preciso, daqui a nada já ninguém bate à porta daquela gente e os esquecidos voltam a ser esquecidos, o Estado volta a falhar ao país, aos mais pobres, aos isolados e esquecidos, porque a vida continua, os vivos continuam, mas se tudo continua como sempre continuou então 64 mortos serão a lápide arrefecida e não vamos lá, não vamos a lado nenhum, ficamos sitiados até à próxima, num até sempre para eles que é um até nunca para nós, é por isso que tem de ser a doer, a doer, a doer, para termos a dignidade de nos indignarmos, para forçar, exigir, ver fazer, ver viver, lá na tragédia que o tempo fará parecer longe, como se não tivesse sido aqui, como se não tivesse sido connosco, como se nós não fôssemos nós.
(excerto do artigo de Pedro Santos Guerreiro "É a Doer", primeiro caderno do Expresso de 24/06/2017, pag. 02)
(sublinhados meus)
(indignada, de olhos enxutos mas abertos)