É certo que o propósito da nossa viagem era conhecer Alexandria. Mas seria ingratidão não falar nos dois dias cairotas, por aquilo que a capital egípcia nos ofereceu, a começar pela beleza serena do Nilo, que divide a cidade em várias cidades.
Em dias luminosos como o que nos calhou em sorte, do alto da Cidadela e para além do casario, consegue ver-se o perfil das pirâmides.
Houve tempo para jogar à bola com os miúdos do bairro, que tranquilamente integraram o estrangiero nas suas brincadeiras. O estrangiero agradeceu.
Depois, foi matar saudades no souk Khan El Khalili,
cair na tentação de mais uma foto no Velho Cairo,
tomar o último chá na zona sofisticada de Zamalek,
e por fim despedirmo-nos do Nilo, do Cairo, do Egipto. Até sempre!
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Almost like being in love, Sonny Rollins with The Modern Jazz Quartet
Não sei se a vi bem, à cidade. Nos corredores da minha memória levava a Alexandria ficcionada nas páginas empolgantes do Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell; levava ainda na minha bagagem interior as descrições apaixonadas de E.M.Forster, e a cobrir tudo, como um manto de impossibilidades, a poesia de K.Kavafis.
Por ela caminhei, por esta cidade inesperada, controversa, indecifrável. Vi nos seus edifícios os sulcos dos tempo; vi nos seus museus o passado arrebatador e inverosímil; vi nas suas ruas o frémito de todas as incertezas futuras.
Durante uma semana vivi esta cidade num misto de vertigem, ironia e lucidez. Mas não sei se a vi bem, à cidade. Sei apenas que regressei alexandrina para sempre.
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A Biblioteca, a antiga biblioteca de Alexandria, permanecerá sempre como o símbolo primeiro da que foi capital cultural do mundo antigo. E sinal do seu ecumenismo, como desejou Alexandre Magno. Esta, a nova Biblioteca, já não é o Museon, santuário consagrado às musas e local de todos os saberes. Ou será? É, sem dúvida, a sua continuidade. Como edifício, é o mais impressionante da cidade, erguendo-se das águas, como o astro-rei iluminando toda a cidade.
A seu lado, a Universidade.
À sua volta, jovens, muitos jovens e gentes de todo o mundo.
Lá dentro, quatro museus, duas exposições temporárias, inúmeros arquivos de saberes, e a sala de leitura. A sala de leitura imponente, magnífica, aberta a todos os que têm curiosidade intelectual.
Dois dias não chegaram para ver tudo o que queríamos ver. Mas chegou para me apaixonar.
No último dia, a caminho da saída de Alexandria, passámos pela derradeira vez junto da parede exterior da Biblioteca, gravada com todos os alfabetos antigos. E de repente, apesar do sol a pino, a paisagem enevoou-se e um silêncio embargado tomou conta de mim. Voltarei?
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Não encontrei todos. Darley há muito que se afastara para os labirintos da sua ficção; Clea já não tem o seu estúdio na Rua Fouad, mas ainda adivinhei o seu perfume no salão do Cecil, onde ela ia dançar com o pai nas noites de São Silvestre; Mountolive é apenas lembrado na placa do bar do hotel e na mente enevoada de Leila.
Mas vislumbrei a sombra de Balthazar na esquina da Rua Lepsius (que já não tem má-fama e agora se chama Sharia Sharm-el-Sheik), subindo sorrateiramente para casa de Kavafis. Continuam a encontrar-se para discutir poesia e cabala, que para eles é a mesma coisa...
(O prazer de viajar nos livros. O prazer de reinventar as páginas de L.Durrell nas ruas da cidade, que assim permanece imutável e misteriosa como todas as obras de arte)
O Deus abandona Marco António
Quando subitamente se ouve à meia-noite um cortejo que invisível passa com sublimes músicas e cânticos – a tua fortuna que desiste, as tuas obras que falharam, os planos de uma vida inteira tornados nada -, não te vale chorar. Como aquele de há muito preparado, corajosamente diz-lhe adeus, à Alexandria que de ti se afasta. Acima de tudo não te iludas, nunca digas que foi apenas sonho, um engano, quanto ouviste: não te agarres a tão vãs esperanças. Como aquele de há muito preparado, corajosamente, e como é próprio de quem, como tu, era digno de uma tal cidade, aproxima-te firme da janela, e escuta emocionado, mas não com lamentos e súplicas cobardes, escuta, derradeira alegria tua, os sons que passam, os sublimes instrumentos do cortejo místico, e diz adeus, adeus à Alexandria que perdeste.
K.P. Kavafis
(in 90 e mais quatro poemas, tradução de Jorge de Sena, Inova, Porto, 1970)
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Os gatos são ainda sagrados, na mística Alexandria. É o que parece. Pouco interessa que haja na cidade judeus, cristão coptas e ortodoxos gregos, muçulmanos e outros, vivendo o seu culto em harmonia ecuménica. Os gatos continuam a ser adorados! Bastet continua a ter o seu culto na cidade!
A cidade alimenta-os, venera-os e acarinha-os. Eles instalam-se onde querem, senhores incontestados.
A todos que encontrei prestei a minha homenagem. Sei que parti sob os seus bons auspícios...
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Foi como se já lá tivesse estado. Acordar de manhã, olhar o Mediterrâneo da janela do Cecil e o dia começava recordando Kavafis:
Deixem-me estar aqui. Que também eu contemple, um pouco, a natureza - o mar, nesta manhã, o céu azul sem núvens, de um e de outro a luz onde se alonga a amarela praia. Deixem-me estar aqui. Que eu pense que isto vejo (não é que o vi um instante, quando aqui parei?), Tudo isto só - e não, também aqui, visões, memórias, e os espectros do prazer antigo.) (1)
Depois, os dias foram escorrendo naturalmente, com os olhos escurecidos por um véu de nostalgia, mas o espírito atento à cidade viva.
É certo que a imagem mítica do Farol continua, invisível mas lá, no local onde agora se vê o Fort Käit-Bey; é verdade que consegui imaginar um magnífico palácio onde apenas resiste uma imponente coluna romana, no meio de um bairro popular. Mas o que eu procurava era um passado mais próximo:
era calcorrear a Rua Fouad (aquela que se chamava Rua Rosetta e que E.M.Forster dizia que ninguém sabe onde termina), saboreando edifícios e lojas até chegar ao museu;
era parar nos livreiros da Sharia Nabi Daniel, sem nada perceber do que estava a ler, mas lendo e percebendo com as emoções;
era perder-me nos bairros esboroados, sujos, nas vielas labirínticas e cheias de lixo, fervilhando de gente, de animais à venda, de gatos-deuses. Era embriagar-me com os cheiros, as gentes, os ruídos. Porque não há silêncio nas ruas da cidade: Alexandria é estonteante, caótica, amálgama de luz e sombras. Porque na cidade não há descanso: só excessos - de trânsito, de gente, de lixo, de beleza.
E tudo isto se harmonizava e fazia sentido quando, ao fim da tarde sentada no terraço do Cecil a saborear um chá, embalada pelo som hipnótico da voz do muezzin, via o sol mergulhar suavemente no Mediterrâneo.
Dias circulares, dias perfeitos.
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(1) O Mar pela Manhã, K.Kavafis, in 90 e mais quatro Poemas, Inova,tradução de Jorge de Sena, ed.Inova
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