Correm rumores de que a casa está encantada. E os indícios levam a crer na veracidade desses rumores.
Vejamos alguns factos: as árvores despem-se e despedem-se por alturas do equinócio outonal, e tudo indicia que não voltam, de tal modo parece irremediável a secura das folhas e a nudez dos troncos. No entanto, por actos inexplicáveis, mal o frio solstício se muda para outras paragens tornam a ressuscitar em fulgores de arco-íris.
O mesmo acontece com as andorinhas: partem tranquilamente num dia combinado entre elas, e sem nunca se enganarem no tempo ou no caminho de regresso, no ano seguinte apresentam-se pontuais, partilhando convivências e cantares.
A casa cheira assim, sempre, a maçãs e liberdade, e em algumas noites todos os quartos têm vista para o luar. E em questões de luz, os pirilampos e as estrelas ensinam continuamente que há diversas maneiras de quebrar as trevas.
Mas não é só aí que reside a estranheza. Há a questão inquietante da elasticidade da casa, que muda de forma e tamanho à medida que os amigos chegam e lá deixam ficar sorrisos, gestos, livros e projectos, sem que isso retire espaço aos habituais habitantes. Estes, por sua vez, guardam ciosamente o segredo do tempo: quando se olham ao espelho vêem-se com rugas e cabelos brancos. Mas esses sinais perturbadores são meras aparências. Porque, ao olharem-se nos olhos, vêem os rostos lisos, a frescura dos sonhos intactos, e até conseguem ouvir o coração um do outro.
Por fim há o gato. Custe embora aceitar pelos menos perspicazes e intuitivos, há fortes suspeitas que se trata ou de um nobre egípcio ou de um cavaleiro florentino disfarçado que, cansado de aventuras inconsequentes e de fúteis romances de corte, para ali foi repousar, sem contudo ter abdicado dos jogos de sedução e da essência da liberdade.
Casa, habitantes e gato, triângulo de prodígios insondáveis, onde o tempo não conta e a ternura é lei.
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(com título oferecido por amigo à laia de desafio, e lembrando "A cidade fantástica" de Ray Bradbury)