sexta-feira, 11 de julho de 2008

Era apenas um desconhecido(ou recordando Robert Walser)



Presumivelmente teria sido um crime. Mas ninguém o pudera provar.

Naqueles dias tudo girou à volta do corpo desconhecido, que um grupo de crianças, num sobressalto imediatamente transmitido a toda a aldeia, descobrira na margem da lagoa parada e carregada de silêncios, não longe da capela em ruínas, cuja rosácea gótica, onde apenas restavam alguns vitrais partidos, ainda acenava gestos antigos de fulgor colorido.

Era ali que as crianças iam brincar, diariamente ao cair da tarde, à volta da quietude da lagoa. Utilizavam também a velha capela como palco onde recriavam, em fértil imaginação, festas e cerimónias de antigamente, e muitas vezes atreviam-se até ao hospício, em cujos muros esmaecidos de humidade e de anos mal se notavam vestígios da cal que outrora os embranquecera. Nas janelas desse mítico edifício reverberavam os raios do sol ao crepúsculo, devolvendo-os plenos de vida e recriando um ambiente intemporal e mágico. De inverno nevava, tornando o local propício a jogos infantis e a algumas tragédias.

Era um corpo de homem velho, e isso podia afirmar-se, disseram as crianças mais tarde, pelo rosto enrugado mas sereno; o resto, coberto pela água da lagoa de onde apenas começara a emergir um cotovelo nu, adivinhava-se preso à margem pela teia das inúmeras raízes das árvores que povoavam o rebordo das águas.

As autoridades sentiram obrigação de fazer uma desinteressada e ligeira investigação no local, tentando vasculhar por umas horas aqui e ali na escuridão instalada, utilizando um método algo desarticulado que não conduziu a qualquer conclusão, salvo às hipóteses remotas de se tratar de uma inesperada errância pela loucura, um apelo de caminhos insondáveis ou um acto de solidão inominável da parte do desconhecido, e que o teria levado a arriscar tudo. Nada ficou provado.
Porque ao voltarem ao local do macabro achado, à chegada dos primeiros sinais da manhã, o corpo tinha desaparecido. Arrastado pelos limos - ou por inesperadas forças subterrâneas - para o fundo, para o lodo, para a solidão absoluta. O assunto foi, pouco a pouco, sendo esquecido. Afinal, era apenas um desconhecido.
(jogo das 12 palavras, in Eremitério)

45 comentários:

Rosa dos Ventos disse...

Muito bem conseguido!
Tem muito de misterioso e algo de policial!

Abraço

Anónimo disse...

"Apetecia-me muito mostrar estas fotografias do lago". E lembraram-lhe um texto obrigado a incluir 12 palavras, e um escritor maldito que lhe serviu de arga massa para a estória. E saiu-lhe isto!
Ainda bem que há apetites e lembranças destas.

Justine disse...

ROSA - sabes que me deu "gozo" este arrojo, eu que li "quilos" de livros policiais e tanto gosto do género!

Ó-DA-CASA - mostrando os "bastidores", estás a mostrar também a tua generosidade apreciativa!

bettips disse...

A "arga" e a "massa" dessse dobrar as palavras com um olhar de apetite. Seja o prédio, seja a pera, seja o lago...
Bjinhos ós da casa

Anónimo disse...

Estás quase aconvençer-me a gostar de literatura policial!
Eu disse quase!
Parabens
Abraço

mariam [Maria Martins] disse...

gostei! é cativante... venha o próximo capítulo!
as imagens também estão adequadíssimas ao clima de mistério... parabéns

bom fim-de-semana (sereno)

um sorriso :)

Duarte disse...

Excelente narrativa, plena de intriga, emulando ao grande Conan Doyle.
Los giros literários dão-lhe ao texto uma grande qualidade, e convertem um relato curto em um assunto resolvido ao puro estilo do Sherlock Holmes.
Sou um mais a associar-me ao género de intriga e acção. Me cativas-te com o ritmo imposto na dedução dos feitos.

mdsol disse...

Excelente. Aliás já não é a primeira vez que te leio nestes desafios. Este acho extremamente bem conseguido. Parabéns!
:)

samuel disse...

A "coisa" bem que podia ir por aí fora e ao fim de 200 páginas saber-se finalmente porquê...

APC disse...

Como de um simples jogo, fizeste um início de um livro esplêndido...! Não, perdão: um início esplêndido de um livro (... esplêndido). É, ainda há motivos para se ir andando pela net, pelos blogs... Ainda há! :-) Gostei muito!

Um abraço, Maria.

Justine disse...

BETTIPS - se não fora o olhar de hedonista sobre as coisas!

POESIANOPOPULAR - grande literatura, acredita!

MARIAM - este é de capítulo único:))Bom fim de semana tb.

Justine disse...

DUARTE - vejo-te também fã dos clássicos da literatura policial. Que belos momentos eles me proporcionaram...
Obrigada:))

MDOSOL - generosa amiga, sinto-me desvanecida com as tuas excessivas e encomiásticas palavras!!!

Justine disse...

SAMUEL - poder, podia, a "piquena" é que não tem fôlego :))

APC - também tu, mãos-largas de elogios escessivos:)) Obrigada, quand-même!Concordo porém que ainda há motivos para se andar pelos blogs.
Abraço

Anónimo disse...

Gostei muito. E está-se mesmo a ver por que "Apetecia-me muito mostrar estas fotografias do lago."
Era a maré das ideias inspiradas a encher e a ter de se expandir... com estilo, com apetite pelas palavras.

(Ah... tive tempo para entrar cá hoje e estou a adorar)

Boas férias aos de casa, que bem merecidas são.

Nanda.

Nilson Barcelli disse...

Um belíssimo texto onde o mistério e o suspense vão prendendo o leitor.
Escreves bem, sabes descrever as situações com desenvoltura, tens imaginação, és criativa, enfim, tens tudo para te lançares num romance.

Bo fim de semana, beijinhos.

M. disse...

O que me encanta em particular neste texto é tudo o que se subentende para lá dos pormenores e que, na minha opinião, está dolorosamente condensado na última frase "Afinal, era apenas um desconhecido."

Anónimo disse...

é essa a grnade diferença: ser ou não ser apenas um desconhecido.
Obrigada pelas tuas palavras lá no meu quintal.
Bom fim de semana

vieira calado disse...

Confesso que não conhecia.
Bom fim de semana.

Anónimo disse...

excelente o texto, deixando espaço à imaginação do leitor, e muito bem relacionado com as imagens - a superfície aparentemente tranquila do lago, dos dias e dos homens e, no entanto, quanta dor e tristeza, quantos mistérios tenebrosos se podem ocultar no coração dos seres e das águas!
marradinhas amistosas desta felina atarefada.

Manuel Veiga disse...

pois parabéns. verdadeiro "perfume" de romance policial. que muito aprecio...

espero a continuação...

Justine disse...

NANDA - estou confusa...és a J. que me pediu instruções ontem???Se és, fico contente.Se não és, estou contente à mesma...

NILSON - obrigada :)).Beijo

M. -sim, tu entendeste bem, foi essa a "chave"

JASMIM - é essa a grande diferença, em tudo! Bom fds tb para ti

Justine disse...

VIEIRA CALADO - bom fds tb :))

IDUN -Gata charmosa, que quieta que tens estado!Feliz por teres aparecido:))Uma festinha em ti!

HERÉTICO -obrigada!Continuação, sei lá...

Tinta Azul disse...

Como já está dito dito, resta-me sublinhá-lo. E, claro, pedir a continuação.
Afinal, era apenas um desconhecido...

Beijos

Patanisca disse...

Apreciei a intriga novelesca e considero ser um excelente exercício do género policial. Mas, e este "mas" não é adversativo, é acrescentativo, apreciei ainda mais as tonalidades emocionais na descrição do ambiente e a reflexão profundamente filosófica do horror ao desconhecido. Sendo mais precisa:

- O corpo é de um desconhecido, um estranho ao local, algo que está fora de sítio;
- O corpo é de um velho e não são a velhice e a morte o grande desconhecimento?
- O ambiente é descrito como intemporal e mágico, na proximidade de uma capela gótica, um local propício a algumas tragédias e dominado por forças subterrâneas;
- A desinteressada e ligeira investigação levada a cabo pelas autoridades reflecte o pânico real que estas têm face ao imprevisto, ao "anormal", ao desconhecido, tudo isso contrário à lei e à ordem;
- A errância é sempre desaprovada, sai sempre fora da ordem divina que instituiu os seres como seres "certinhos".

Sente-se uma premência de acabar a estória. Escrever é enveredar por caminhos desconhecidos, o que também causa medo, inseguranças e, no extremo, pavor.

E o "assunto foi, pouco a pouco, sendo esquecido".

É para um retorno, não é?

Beijinho.

Fernando Samuel disse...

Para lá (muito, muito, muito para lá..) das doze palavras, vale o excelente texto (e as não menos excelentes fotos)...

Um beijo amigo.

Lúcia disse...

Justine: Eu, que entre outros géneros, adoro literatura policial, fiquei encantada e a achar que aqui está o mote para um livro policial. Pensa lá nisso, que estou com água na boca.
Beijinhos

Anónimo disse...

Não sou a J..
Sou a Fernanda das tartes...
dos gatos... dos cães... e de outras necessidades prementes que nos fazem lutar e andar...

Sou a Nanda B.

Muitos Bjs

Eremit@ disse...

reli a tua bela história.
"....afinal era apenas um desconhecido."
tendemos a esquecer que somos o "outro" e o "outro" somos nós. _______________

________Mas também, vim agradecer o teu comentário nas minhas imitações de poesia. Sabes bem que se não apareço é mesmo pela escassez do tempo. E não é desculpa.
Abraço

Mar Arável disse...

Desconhecidos somos todos nós

por vezes de nós mesmos

Força.Estamos numa sociedade policial que merece bons textos

como o seu com sinais de amanhãs

Anónimo disse...

Adorei... Não é preciso dizer mais nada porque outros já disseram quase tudo e melhor do que eu consigo dizer. è só para saberes que li.

Justine disse...

LÚCIA - és uma ternura, mas se fosse a ti relia os clássicos...:))

NANDA B. - tartes, gatos e cães - que outras necessidades prementes podemos nós ter??

EREMITA - abraço recebido e retribuído!

Justine disse...

MAR ARÁVEL - também prezo muito a tua opinião! ("seu"??? Sinais de amanhã tento sempre deixar...)


MIA - amiga mi(nh)a, que bom saber que andaste por aqui. Até amanhã...

Justine disse...

TINTA AZUL -e quem se importa om deconhecidos? Beijo :))

PATANISCA - Que grande crítica literária! Quase me senti escritora :))Obrigada!

FERNANDO SAMUEL - prezo muito a tua opinião!Beijo!

Sal disse...

Justine, é giríssimo o texto.
Juro que quando comecei a ler interrompi para puxar a página para baixo para saber quem era o autor.LOL.
Depois é que percebi.. (estou um bocadinho lenta...):)))
Sugiro que continues a história. Ía ser divertidíssimo...
beijinhos

~pi disse...

tão real quanto triste,

tão triste como

comprovadamente

se passa


[ desconhecidamente se

vive e se morre

muito por

mero

acaso



~

Pitanga Doce disse...

Só faltou o fundo musical do Ficheiros Secretos. Aquilo me dava arrepios. Credo! E o rapaz a rir de mim!

bjs senhora escritora.

mena maya disse...

Fantástico o teu mini "Krimi"Justine!

A tua capacidade de escrever uma assunto a não ser de forma alguma esquecido!
Mãos à obra, que o número de fãs será ceretamente grande!

Beijinho

Justine disse...

SAL - fizeste-me rir! Mas fui mesmo eu...:))

~PI -apanhaste uma das "nuances" que eu queria transmitir: a tristeza .

PITANGA - há dias de calafrios, sim!

MENA M. - falta o fôlego, amiga:))
Trotzdem bedanke ich dich für deine Wörte:))

Azul disse...

São afectos que jorram das palavras que, como sempre, dão lugar a textos como este seu. Magnífico conjunto na expansão das 12 palavras. Sensibilidade máxima, espantosa. Belíssimo. Pano de fundo musical muito bem lembrado! Amplo, intenso, romântico, a fazer justiça ao ambiente de suspense do texto. Um abraço para si. Até breve. Azul.

Justine disse...

AZUL - e viva o 14 Julho, que te fez aparecer de novo:))Já lá vou ler. Obrigada pelas crítica generosa!

Teresa David disse...

Magnifico texto onde se sente uma humanidade vibrante além da qualidade literária. Parabéns
Bjs
TD

jorge esteves disse...

De mistério sobra a dúvida: onde me prendo?, na estória ou nas imagens?...

Abraços!

Justine disse...

TERESA - A humanidade vibrnte é reflexa!Um beijo enorme para ti


TINTA PERMANENTE - que saudades de te ter por perto. Bem-vindo:))

GR disse...

Este texto é o levantar do véu de um magnífico livro policial.
Mas…onde está o resto?
Parabéns, cada dia que passa a tua prosa está mais apurada.

GR

jawaa disse...

Não será possível saírem imagens no livro?
Deveria encarecer muito, mas é pena!
Há quanto tempo ando sem tempo?!!!
Desculpa.
Bjo