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domingo, 22 de janeiro de 2017

Eugénio, sempre

 
Versos de Inverno
 
Outra vez o abutre, o abutre
da tristeza, cai-nos em cima,
crava as garras, rasga,
retalha: - Oh irmão
do deserto, breve
oásis de sol
neste inverno: não há terra
de promissão
fora do corpo; ou da palavra.
 
(Rente ao Dizer, Eugénio de Andrade)
 
.
Sur l'infini bleu, Anouar Brahem
 

 
 

 

domingo, 1 de novembro de 2015

Não se aprende


Não se aprende grande coisa com a idade.
Talvez a ser mais simples,
a escrever com menos adjectivos.
Demoro-me a escutar um rumor.
Pode ser o prelúdio tímido ainda
do cantar de um pássaro, uma gota
de água na torneira mal fechada,
a anunciação do tão amado
aroma dos primeiros lilases.
Seja o que for, é o que me retém
aqui, me sustenta, impede de ser
uma qualquer vibração da cal,
simples acorde solar, um nó
de luz negra prestes a explodir.

 Eugénio de Andrade, in O Sal da Língua
 
. 
Serenade no.3 in D Major, RV203, Mozart

                 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Escrevo



Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal ou do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.
.
 
(in Os Sulcos da Sede, Eugénio de Andrade)
 
.
 
Serenade No.3 in D major KV 203, Mozart (Munich Symphony Orchestra)
 
 
 
 
 



domingo, 22 de setembro de 2013

Eugénio, sempre



CERCO
 
O corpo começa a consentir,
ceder, abrir fendas
com as chuvas altas,
a mostrar, quase exibir
velhas raízes, rugas, mágoas,
a secura próxima dos galhos;
o corpo, sim, ele que foi afável
e crédulo e solar - tão
indiferente agora às matinais
e despenteadas vozes:
distante e tão cercado
de apagadas águas.
 
(Rente ao Dizer, Eugénio de Andrade)
 
 
.
 
E la nave va, Anouar Brahem
 
 

 


domingo, 3 de março de 2013

Na Luz a Prumo


Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.
 
.
(in Os Sulcos da Sede, Eugénio de Andrade)
.
 
Nocturno p.piano Nr.21, B108, F.Chopin (MªJoão Pires)
 
 


domingo, 10 de fevereiro de 2013

À Beira de Água

 
 
Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.
.
(in Os Sulcos da Sede, Eugénio de Andrade)
 
.
 
Nocturno para piano nº21, B 108, F. Chopin (MªJoão Pires)
 


segunda-feira, 26 de março de 2012

Arrepio Na Tarde

Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.

(Os Sulcos da Sede, Eugénio de Andrade)
.
Sonata para piano nº2(Marcha Fúnebre), F.Chopin

segunda-feira, 5 de março de 2012

Da Maneira Mais Simples

É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.


(Os Sulcos da Sede, Eugénio de Andrade)
.
Memories of you, Charles Mingus

terça-feira, 26 de abril de 2011

Para que não me esqueça...









Poema à Mãe


No mais fundo de ti,
Eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O retrato adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa:
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? –
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda ouço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio de um laranjal


Mas – tu sabes – a noite é enorme
E todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.
.
(Eugénio de Andrade, Os Amantes sem dinheiro)
.


(Tento não esquecer,filho. Até amanhã)

.

It never entered my mind,Miles Davies

domingo, 21 de setembro de 2008

Sobre a sombra




Era Setembro, era onde a sombra roi os ramos. Os corpos são mais jovens nestas dunas, e só os jovens nos podem ensinar. Por isso os procuramos, e a pergunta é sempre a mesma - como se morre? Envelhecer não é assim tão simples, por mais que digam. Quantos dias de sol o declínio nos reserva? Por quanto tempo poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender? Esta alegria de noutros corpos sermos ainda alguma juventude, como guardá-la, sem a degradar?


..



(Eugénio de Andrade, in Memória doutro rio)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

As nuvens



Por momentos dançam nas colinas
ou nos olhos das rolas:
vão para o sul, procuram
a luz molhada das ilhas,
os minúsculos pés da chuva,
a crepitação do mar,
o cheiro juvenil da lenha
ainda verde e com resina,
a alma das pequenas praças,
os pardais, o sussurro das matinas.

.
(Eugénio de Andrade, in Rente ao Dizer)
(fotos cedida por Mia)

domingo, 10 de agosto de 2008

Outros ritmos, outros modos








Não é o mar, não é o vento, é o sol

que me dói da cintura aos sapatos.

Sol de fins de julho,

ou de agosto a prumo: finas

agulhas de aço.

É o sol destes dias, aceso

na folhagem.

Bebendo a minha água.

Colado à minha pele.

É doutro território, doutro areal.

Tem outros ritmos, outros modos,

outros vagares para roer

a cal, morder-me os olhos.

Até quando cega canta ao arder.





(Eugénio de Andrade, in Os Sulcos da Sede)

terça-feira, 22 de julho de 2008

Verão maduro











O Silêncio




Dai-me outro verão nem que seja
de rastos, um verão
onde sinta o rastejar
do silêncio,
a secura do silêncio,
a lâmina acerada do silêncio.
Dai-me outro verão nem que fique
à mercê da sede.
Para mais uma canção.


(Eugénio de Andrade, in Rente ao Dizer)