terça-feira, 5 de outubro de 2010

Al-Iskanderya(Alexandria) - a real e a mítica II

Foi como se já lá tivesse estado. Acordar de manhã, olhar o Mediterrâneo da janela do Cecil e o dia começava recordando Kavafis:

Deixem-me estar aqui. Que também eu contemple,
um pouco, a natureza - o mar, nesta manhã,
o céu azul sem núvens, de um e de outro a luz
onde se alonga a amarela praia.

Deixem-me estar aqui. Que eu pense que isto vejo
(não é que o vi um instante, quando aqui parei?),
Tudo isto só - e não, também aqui, visões,
memórias, e os espectros do prazer antigo.) (1)


Depois, os dias foram escorrendo naturalmente, com os olhos escurecidos por um véu de nostalgia, mas o espírito atento à cidade viva.
É certo que a imagem mítica do Farol continua, invisível mas lá, no local onde agora se vê o Fort Käit-Bey; é verdade que consegui imaginar um magnífico palácio onde apenas resiste uma imponente coluna romana, no meio de um bairro popular. Mas o que eu procurava era um passado mais próximo:

era calcorrear a Rua Fouad (aquela que se chamava Rua Rosetta e que E.M.Forster dizia que ninguém sabe onde termina), saboreando edifícios e lojas até chegar ao museu;

era parar nos livreiros da Sharia Nabi Daniel, sem nada perceber do que estava a ler, mas lendo e percebendo com as emoções;






era perder-me nos bairros esboroados, sujos, nas vielas labirínticas e cheias de lixo, fervilhando de gente, de animais à venda, de gatos-deuses. Era embriagar-me com os cheiros, as gentes, os ruídos. Porque não há silêncio nas ruas da cidade: Alexandria é estonteante, caótica, amálgama de luz e sombras. Porque na cidade não há descanso: só excessos - de trânsito, de gente, de lixo, de beleza.

E tudo isto se harmonizava e fazia sentido quando, ao fim da tarde sentada no terraço do Cecil a saborear um chá, embalada pelo som hipnótico da voz do muezzin, via o sol mergulhar suavemente no Mediterrâneo.
Dias circulares, dias perfeitos.
.
(1) O Mar pela Manhã, K.Kavafis, in 90 e mais quatro Poemas, Inova,tradução de Jorge de Sena, ed.Inova
.
Almost like being in love, Sonny Rollins with The Modern Jazz Quartet









25 comentários:

João Roque disse...

Justine
gostei tanto deste post sobre esta cidade que gostava muito de conhecer, com as tuas fotos e as referências literárias que lhe juntaste.

Há.dias.assim disse...

Dias perfeitos, também me parece!

Heduardo Kiesse disse...

e nem precisei de me levantar para ir... contigo!

:-)


teu beijo, do miudo!

M. disse...

Contagiante o teu sentir. Cheio de beleza.

Licínia Quitério disse...

Dás cabo de mim, Justine. Levas-me na viagem a um lugar onde também já estive, certamente. Com Kavafis, perdendo-me nas ruelas, procurando sempre a cidade mítica que em nós vive.

Fico tão contente por lá teres estado! Um abraço grande.

OUTONO disse...

FASCINANTE!
Obrigado, pela partilha...
Beijo.

Patti disse...

Maravilhoso este contraste de culturas, de cores...
Adoraria conhecer.

Sensualidades disse...

simplesmente fantastico

Beijos
Paula

Rosa dos Ventos disse...

Cidade inebriante que o teu olhar captou tão bem, não deixando ao acaso o mínimo pormenor...
E que bem legendaste as imagens!

Abraço agradecido pela continuação da visita

R. disse...

É certo que o primeiro farol da História terá ali sido erguido. Talvez, por isso, ainda que "invisível", continue a iluminar o pensamento e as emoções de quem por ali passa.

E quem aqui vem, nunca se desilude, Justine.
Um abraço!

Sara disse...

Os poetas têm este condão: de nos emprestarem as suas palavras, para com elas "falarmos" também. Neste caso, a voz do "Poeta da Cidade" harmonizou-se de forma perfeita com a da viajante, para nos deixar perceber o pulsar da experiência.

Um abraço e um bom resto de semana.

Pitanga Doce disse...

Do mar e o pôr de sol eu nem falo nada, mas diz: essa loja tão colorida, isso são frutas secas? Tâmaras e tal?

Fernando Samuel disse...

Quando o texto funde a real e a mítica tudo é (ainda)mais belo...

Um beijo.

"Cavafixe" disse...

(...)
A muitas cidades peregrinas do Egipto irás
para aprender, para aprenderes dos que sabem.
Tem Ítaca todo o tempo na tua mente,
estás predestinado a lá chegar.

Mas não apresses nunca a viagem!
Melhor será se muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha já enfim velho.
Rico de quanto ganhaste no caminho
sem esperar pelas riquezas que Ítaca te venha a dar.
Uma bela viagem te levará a Ítaca,
se não for assim, não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre a ela dar-te.
Ítaca não te iludirá
se a achares pobre,
foste tu que te tornaste sábio,
um homem de experiência.
E, então, sabes!

Então, sabes o que significam Ítacas.
_______________

E a viajar aprendemos!

MagyMay disse...

E este viajar partilhado nas imagens e nas palavras...
E em que viajo, em que me emociono também.
Te agradeço, Justine.

Abraço, abraço

Benó disse...

Ainda bem que te temos de volta. Penso que ficaste feliz com a viagem; as tuas descrições assim o demonstram.Estou contente contigo e continuarei a ver Alexandria com o teu olhar.
Um abraço forte.

Sensualidades disse...

hahaha eu ja tirei uma foto parecida

e constipei-me LOLOL

beijinhos\
Paula

Anónimo disse...

Belíssimas crónicas sobre Alexandria.
Chegaste a visitar a biblioteca?
Bjs

utopia das palavras disse...

Há muito que não viajava contigo!
Valeu a pena!

:))
Abraço

mdsol disse...

Dias perfeitos, seguramente, Testemunho perfeito, sem dúvida. A deixar uma imensa vontade de também ir...
Beijinho

:)))

Duarte disse...

Sim, aprendi, e muito! Gostei.
Deixei-me levar pelo que vi e li, embebi-me dela, é bela, mas suja. Continuo a desejar conhecê-la mais de perto, mas não posso suportar certas coisas de determinadas culturas.
Uma crónica perfeita, rica em matizes no uso da linguagem que enriquece a narração: cativa, engancha...

Um grande abraço, querida amiga

anamar disse...

Continuamos a viajar co convés da tua partilha...
Beijinhos from Figueira
:))

Alberto Oliveira disse...

Mounty leu e não gostou
deu-lhe um baque no coração
«gatos-deuses? e eu que sou?!
peça de decoração?»

«passeia em tempo de sol
mas não me tragas despeito
traz-me a lâmpada* do Farol
pode ser que faça jeito.»


* Para ir de noite aos pássaros.

Anónimo disse...

coninua... está a ser tão bom!...
obrigada!:)

beijocassssss
vovómaria

Lilá(s) disse...

Gostei imenso destes postes, dias para não esquecer...
Beijinhos