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domingo, 26 de março de 2023

Forma de Inocência


 FORMA DE INOCÊNCIA

Hei-de morrer inocente
exactamente
como nasci.
Sem nunca ter descoberto
o que há de falso ou de certo
no que vi.

Entre mim e a evidência
paira uma névoa cinzenta.
Uma forma de inocência,
que apoquenta.

Mais que apoquenta:
enregela
como um gume
vertical.
E uma espécie de ciúme
de não poder ser igual.


(in OBRA POÉTICA, António Gedeão)

.
Eine kleine Nachtmusik, Mozart


domingo, 23 de janeiro de 2022

Chiaroscuro


Só as tuas mãos trazem os frutos.

Só elas despem a mágoa

destes olhos, choupos meus,

carregados de sombra e rasos de água.


Só elas são

estrelas penduradas nos meus dedos.

- Ó mãos da minha alma,

flores abertas aos meus segredos



(As Mãos e os Frutos, Eugénio de Andrade)


. Body and Soul, John Coltrane

domingo, 29 de abril de 2018

Mounty com poesia





 
Com um lindo salto

Leve e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando à noite vem a fadiga
Toma seu banho
Passando a língua pela barriga

.
(Vinícius de Moraes)


.
Sweet and lovely,  Thelonious Monk & John Coltrane




 












domingo, 12 de novembro de 2017

O Terceiro Corvo








O Terceiro Corvo


Oh Lisboa
como eu gostava de ser
o terceiro corvo do teu emblema…
estar implícita na tua bandeira
negra e branca
como tinta e papel
como escrita e espaço!
Ser teu desenho
tua nova lenda
invenção deste século
que já não inventa
e se interroga:
donde vieram estes corvos?
Como tu, Vicente,
eu também não sou de cá
não sou daqui
não pertenço a esta terra
e talvez nem sequer a este mundo…
Porém estou aqui
nesta dolorosa praia lusitana
cheia de um tumulto inútil
que enegrece as tuas areias
e polui o ventre do rio
que os golfinhos há muito desertaram
E olhando as nuvens dedilhadas pelo vento
sentindo a terna dor do teu sentir sentido
peço-te, Lisboa:
surge de novo bela
reinventa
a santidade perdida do teu emblema
.
Ana Hatherly, in Em Lisboa sobre o mar, Poesia 2001-2010

.
Verdes Anos, Carlos Paredes





domingo, 2 de julho de 2017

As Florestas e os Ventos

 
As Mãos e os Ventos
 
Das palavras amordaçadas em nossos lábios roxos
nascerão ventos,
nascerão ventos.
 
E nascerão mãos
para conduzir os ventos.
 
(in As Mãos e os Ventos, Papiniano Carlos)
.
 

 
 

 

sábado, 29 de abril de 2017

O sonho!





 
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer
 
Como estes pinheiros mansos
que em verde e oiro se agitam...
 
 
.
 
( Pedra Filosofal, António Gedeão)




sábado, 11 de setembro de 2010

A Mão no Ombro


Como se tu alumiasses
ainda
cada degrau, cada palavra,
e a noite não fosse
a única porta estranhamente
branca,
eu subia sem conhecer o ombro
onde apoiava a mão.
.
(Deixo-vos com o Poeta, e vou ali-já-venho, realizar um velho sonho. Voltarei mais esclarecida. Ou mais perplexa. Diferente.)
.
Rente ao Dizer, Eugénio de Andrade
.
Symfoni i c-dur 2, A.Vivaldi(I Musici di Zagreb)









sexta-feira, 2 de julho de 2010

Enquanto

Enquanto

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
Para ver como é;
Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
E correr pelos interstícios das pedras,
Pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
Órfãs de pais e de mães,
Andarem acossadas pelas ruas
Como matilhas de cães;
Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
Num silêncio de espanto
Rasgado pelo grito da sereia estridente;
Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
Amassando na mesma lama de extermínio
Os ossos dos homens e as traves das suas casas;
Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.
.
António Gedeão, Obra Poética
.
Nocturno Nº20 "Reminiscence",Chopin (MªJoão Pires)








sexta-feira, 9 de abril de 2010

Caminho Largo



-------------------------------....E os pássaros
-------------------------------....Cansados
........................................Nos fios do tempo
........................................Em silêncio
........................................Repousaram
.
Joaquim Castilho, Quase Poemas
.
Chopin, Valsa para piano nº7 -Vladimir Ashkenazy


sábado, 20 de março de 2010

Arco-da-Aliança


O verde da luz tímida
das tílias,
o amarelo solar
do matinal cantar dos galos,
o azul feliz das uvas de Corinto,
o roxo friorento das primeiras
violetas, o vermelho
glorioso do grito dos falcões:
de norte a sul
era o arco-íris que rompia
na manhã molhada,
era o inverno que se ia embora,
o velho e sonolento
inverno que partia:
da janela
avistam-se as últimas barcas--
.
Eugénio de Andrade, O Sal da Língua
.
Comme une absence,Anouar Brahem



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Poesia em liberdade


Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
.
Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos
.
Jazz Suite Nº1, Waltz(D.Shostakovich)



segunda-feira, 30 de novembro de 2009

As nuvens






Por momentos dançam nas colinas
ou nos olhos das rolas:
vão para o sul, procuram
a luz molhada das ilhas,
os minúsculos pés da chuva,
a crepitação do mar,
o cheiro juvenil da lenha
ainda verde e com resina,
a alma das pequenas praças,
os pardais, o sussurro das matinas.
.
Eugénio de Andrade, Rente ao Dizer
.

Offenbach, Barcarolle, The Tales of Hoffmann
(Berliner Phil.Classical, Karajan)



segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Poesia, sempre


Vidro Côncavo

Tenho sofrido poesia

como quem anda no mar.

Um enjoo.

Uma agonia.

Sabor a sal.

Maresia.

Vidro côncavo a boiar.


Dói esta corda vibrante.

A corda que o barco prende

à fria argola do cais.

Se vem onda que a levante

vem logo outra que a distende.

Não tem descanso jamais.

.
(António Gedeão, Movimento Perpétuo)
.
Vivaldi, violin concerto op.3/6



sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Anoitecer





Por vezes não é mais do que uma sombra
no soalho à frente do teu passo.
Por vezes dizes - vai-te
e arredas a cortina.
.
Por vezes tem contornos de animal
cansado e ferido.
Não sabes se avançar se recuar.
Não sabes se gritar se emudecer.
.
Do anoitecer não te falou o berço.
.
.
De Pé Sobre O Silêncio, Licínia Quitério
.
Valsa nº9, Chopin,( V. Ashkenazy)



segunda-feira, 14 de setembro de 2009

As Janelas



.............................As janelas
.............................por onde entram as silvas,
.............................a púrpura pisada,
.............................o aroma das tílias, a luz
.............................em declínio,
.............................fazem deste abandono
.............................uma beleza devastadora
.............................e sem contorno.


Rente ao Dizer, Eugénio de Andrade
.


Nocturno nº21, Chopin(MªJoão Pires)

















segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Saluti a...


Isto de a gente sorrir, de cabeça inclinada
sobre o ombro direito,
para uma tela sarapintada
sem forma nem jeito,
só porque tem luz,
só porque tem cor,
é signo de graça,
é sinal de amor.
.
(Saluti a Vincenzo, Obra poética,António Gedeão)
.
Witchcraft, Bill Evans





sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Washington Square



















Por toda a parte, desde Washington
Square que os esquilos
me perseguem. Mesmo em Camden,
junto ao túmulo de Whitman
vinham com o outono
comer à mão. Mas é de noite
que mais me procuram: os olhos negros
continhas acesas.
Agora vou deitar-me à sombra do rio
até um deles entrar neste poema
e fazer a casa.
.

Rente ao Dizer, Eugénio de Andrade
.
Eine Kleine Nachtmusik, Mozart
.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Os rios de palavras







Surdo subterrâneo rio
.
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
.
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
-surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
.
Eugénio de Andrade, Os amantes sem Dinheiro
.
Chopin, Nocturne Murmures de la Seine(Maria João Pires)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Tempo de Poesia




Todo o tempo é de poesia.

Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.

Todo o tempo é de poesia.

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.

Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.

Todo o tempo é de poesia.

Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.
.

António Gedeão, Obra Poética
.
Verdes Anos, Carlos Paredes

segunda-feira, 16 de março de 2009

Amargo estilo novo




Tudo é fácil quando se está brincando com as flores entre os dedos,

quando se olham nos olhos as crianças,

quando se visita no leito o amor convalescente.

É bom ser flor, criança, ou ser doente.

Tudo são terras donde brotam esperanças,

pétalas, tranças,

a porta do hospital aberta à nossa frente.


Desde que nasci que todos me enganam,

em casa, na rua, na escola, no emprego, na igreja, no quartel,

com fogos de artifício e fatias de pão besuntadas com mel.

E o mais grave é que não me enganam com erros nem com falsidades

mas com profundas, autênticas verdades.


E é tudo tão simples quando se rola a flor entre os dedos!

Os estadistas não sabem,

mas nós, os das flores, para quem os caminhos do sonho não guardam segredos,

sabemos isso e todas as coisas mais que nos livros não cabem.


.
António Gedeão,in Linhas de Força, 1967

.
(vou ali e já venho - boa semana)
.
Spring is here, Bill Evans Trio